A facilidade para a abertura de novas igrejas, o
fortalecimento do movimento neopentecostal e efeitos da situação econômica são
apontados como motivos
RIO – (O Globo) - A expansão da fé no Brasil
acontece em ritmo intenso: uma nova organização religiosa surge por hora no
país. A facilidade para a abertura de novas igrejas — a burocracia é pequena,
ao contrário do que acontece em outras atividades —, o fortalecimento do
movimento neopentecostal e até mesmo os efeitos da situação econômica são
apontados como motivos que podem explicar o fenômeno.
De janeiro de 2010 a
fevereiro deste ano, 67.951 entidades se registraram na Receita Federal sob a
rubrica de “organizações religiosas ou filosóficas”, uma média de 25 por dia.
Ao levar em conta apenas os grupos novos, que não são filiais daqueles já
existentes, o número é de 20 por dia. O processo é simples: primeiro, obtém-se
o registro em cartório, com a ata de fundação, o estatuto social e a composição
da diretoria; depois, os dados são apresentados à Receita, para que o órgão
conceda o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), item obrigatório para o
funcionamento legal das instituições.
Com o CNPJ em mãos,
basta procurar a prefeitura e o governo estadual para solicitar, caso
necessário, o alvará de funcionamento e garantir também a imunidade tributária
— a Constituição proíbe a cobrança de impostos de “templos de qualquer culto”.
Igrejas não pagam IPTU, Imposto de Renda (IR) sobre as doações recebidas, ISS,
além de IPVA sobre os veículos adquiridos. Aplicações financeiras em nome das
organizações também estão livres do IR. Em alguns estados, há ainda isenção
sobre o recolhimento de tributos indiretos, como o ICMS.
A vedação se estende
a todo tributo que incide sobre a atividade religiosa, desde que o recurso
arrecadado seja utilizado naquela finalidade. Caso a instituição não utilize o
recurso para promover sua crença, ela pode ser autuada para pagar o imposto
devido — explica o advogado Levy Reis, especialista em Direito Tributário,
apresentando um exemplo.
Caso uma igreja
tenha um estacionamento, não incide qualquer imposto sobre os ganhos, desde que
ele seja usado para sua atividade em si. Mas se esta instituição arrecada o
recurso e aplica numa viagem de um pregador a passeio para Las Vegas, fica
descaracterizada a imunidade tributária. E aí sim pode ser aplicado o imposto
com multa.
Migração de fiéis - O texto constitucional estabelece a imunidade fiscal e a liberdade de
culto — o direito é classificado como “inviolável”. Não há, portanto, a
necessidade de apresentar requisitos teológicos ou doutrinários para abrir uma
igreja. A facilidade faz com que muitas organizações sequer tenham um lugar,
próprio ou alugado, para receber os fiéis, informando o endereço de imóveis
residenciais ou de outras empresas como sendo seus.
A teóloga Maria
Clara Bingemer, professora da PUC-Rio, aponta que a migração de fiéis também é
um ponto que possibilita o surgimento de novas entidades. Um relato comum é o
de integrantes de igrejas que, ao adquirir o domínio da doutrina e das
pregações, resolvem abrir sua própria igreja.
— Os fiéis dessas igrejas neopentecostais, muitas
vezes, são ex-católicos, ex-protestantes, estavam em outras religiões e
migraram. Mas não permanecem: elas são lugar de trânsito — analisa a teóloga.
Do ponto de vista tributário, a fiscalização sobre os impostos da União cabe à Receita Federal, enquanto as secretarias estaduais e municipais de Fazenda devem supervisionar os tributos a cargo dos estados e cidades. O Ministério Público também tem o dever de averiguar possíveis irregularidades e desvios provocados pela blindagem fiscal.
No Rio, dados do
Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), mostram que há 21.333
CNPJs ativos de organizações religiosas. De janeiro de 2010 a fevereiro deste
ano, houve 9.670 registros. O estado campeão no período foi São Paulo, com
17.052. Não há um cadastro único que apresente todas as igrejas em atividade no
país, portanto a verificação da abertura do CNPJ é o caminho mais seguro. Mas,
como o processo é autodeclaratório, a Receita ressalva não ser possível
assegurar que todos os cadastros são de organizações religiosas.
Entre as
denominações que surgiram, estão movimentos como a “Associação Ministerial
Homens Corajosos”. O grupo não tem um templo próprio e percorre diversas
igrejas evangélicas com palestras sobre os valores da vida em família. Eles
direcionam as pregações para grupos de homens por acreditar que, sem a presença
das mulheres, eles se sentirão mais à vontade para “revelar os pecados” e, a
partir daí, mudar de postura. As reuniões de preparação para as palestras
acontecem em uma sala cedida em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense — é onde
funciona a funerária de Marcos de Jesus, um dos integrantes. Há ainda, no
estado, organizações chamadas “Associação Missionária Boneka”, “Igreja
Missionária As Portas do Inferno Não Prevalecerão” e a “Associação Ministerial
Chris Duran”, criada pelo cantor, hoje também pastor, que fez sucesso nos anos
1990. Já a Igreja Protestante Escatológica, que estuda um ramo do cristianismo,
funciona na casa de seu fundador, na Tijuca, Zona Norte do Rio.
Todos nós temos
nossos trabalhos, ninguém vive da atividade pastoral. Não há cobrança de
dízimo, as igrejas que nos convidam pagam apenas os kits que entregamos e, em
alguns casos, nosso deslocamento — afirma Marcos de Jesus, integrante da
associação dos Homens Corajosos.
O advogado Gilberto
Luiz do Amaral, presidente do Conselho Superior do IBPT, defende a imunidade
fiscal para os templos:
Não se pode atacar o
todo com a premissa de que alguns usam a religião como atividade econômica.
Partidos políticos também têm imunidade. Uma revisão constitucional não deveria
servir só para os templos.
Blindagem
fiscal é tratada com muita cautela - Igrejas elegem
deputados, senadores e, assim como outros atores políticos, fazem lobby no
Congresso. A influência vem da força de um eleitorado capaz de decidir eleições
— não à toa, mesmo os candidatos pouco habituados aos ritos religiosos
frequentam templos e rezam de acordo com o calendário eleitoral.
O fim da blindagem
fiscal é um tema explosivo e cercado de cuidados em Brasília. Já uma possível
expansão dos benefícios tributários tornou-se um assunto incômodo em uma agenda
econômica protagonizada pela crise.
Dois projetos
antagônicos tramitam no Congresso. Uma Proposta de Emenda Constitucional do
então senador Marcelo Crivella, hoje prefeito do Rio, defende a extensão da
isenção de IPTU aos imóveis alugados pelas igrejas. O projeto foi aprovado no
Senado e está pronto para ser votado na Câmara. Mas, num ambiente dominado por
cortes orçamentários e Reforma da Previdência, a pauta não deverá deixar a
gaveta tão cedo. Por ironia, o Rio seria prejudicado com as perdas no IPTU,
segunda maior fonte de receita.
Já o projeto de
iniciativa popular que defende o fim da imunidade tributária para as igrejas
aguarda o parecer do relator, senador José Medeiros, na Comissão de Direitos
Humanos. Um assunto espinhoso, que traria gastos enormes a organizações pouco
acostumadas ao rigor fiscal.
Um episódio de 2015
resume bem o tema. Ao texto de uma medida provisória que elevava impostos,
parte do pacote de ajuste fiscal da época, inseriu-se um artigo que anistiava
multas a organizações religiosas. O acordo envolveu Dilma Rousseff e Eduardo
Cunha. O texto virou lei, livrando poderosas igrejas de multas pesadas.
MPF investiga
venda de horários para igrejas nas emissoras de TV -
A presença maciça de programas produzidos por
igrejas evangélicas nas grades das emissoras abertas de televisão despertou a
atenção do Ministério Público Federal (MPF), que apura possíveis
irregularidades na prática.
Duas hipóteses
sustentam as investigações, que acontecem no Rio e em São Paulo: a
subconcessão, que é proibida por lei; e o desrespeito ao limite estipulado para
a propaganda, hoje em 25% — como as organizações religiosas pagam aos canais,
há o entendimento de que se trata de uma negociação publicitária.
De acordo com um
estudo da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o caso mais expressivo é o da
CNT, que tem quase 90% da programação vendida para a Igreja Universal do Reino
de Deus (Iurd). Em São Paulo, o MPF já impetrou uma ação civil pública contra a
CNT e a Iurd. No Rio, o inquérito verifica, além da CNT, as situações de
Record, Bandeirantes, RedeTV e Gazeta.
O procurador da
República Pedro Machado, à frente do processo em São Paulo, afirma que a
prática configura uma “transferência indireta” da concessão:
É o desvirtuamento
de um serviço público concedido pela União. E dá para equiparar essa
transferência a um espaço publicitário, porque a emissora é remunerada por isso
— afirma.
Já o procurador da
República Sérgio Suiama, responsável pela investigação no Rio, acrescenta outro
elemento ao debate: a desigualdade no uso do espaço de uma concessão pública.
Na praça, qualquer
um pode pregar, mas na TV, que também é um espaço público, só quem paga pode
fazer a pregação. Só as igrejas mais poderosas e com mais dinheiro podem
financiar isso. Ou autoriza todo mundo
a ocupar o espaço, ou proíbe todo mundo — opina.
Além
da Iurd, Assembleia de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, entre outras
entidades, também alugam horários para a transmissão de seus cultos. O tema, no
entanto, divide opiniões.
O Ministério das
Comunicações já manifestou, nos autos do inquérito do Rio, o entendimento de
que não vê irregularidades no caso da CNT. As regras para radiodifusão não
estabelecem limites para a produção de programas por terceiros, o que, de
acordo com esta interpretação, seria o caso, e não uma relação publicitária. A
segunda instância da Justiça Federal de São Paulo, na análise de uma liminar,
negou o pedido para que a programação da CNT fosse suspensa.
Nos documentos que
constam do inquérito, as emissoras negam irregularidades, sustentam que são
responsáveis pelos conteúdos veiculados e garantem que respeitam os limites
determinados para a exibição de publicidade.
Organizações religiosas no Rio
Associação Ministerial Homens Corajosos
Associação Ministério Chris Duran
Associação Missionária Boneka — Semeando
Comunidade de Aliança Maria Rosa Mística
Comunidade Evangélica Alfa e Ômega
Assembleia de Deus Derrubando Muralhas em Irajá
Igreja Evangélica Pentecostal Porta Estreita
Igreja As Portas do Inferno Não Prevalecerão
Igreja Pentecostal Geração Eleita
Igreja Protestante Escatológica
Ministério Para Que Ele Cresça
Ministério Pentecostal Labareda de Fogo
Assembleia de Deus Geração Eleita em Cristo
Assembleia de Deus Garagem da Vitória
Ministério Itinerante o Querer de Deus
Igreja Missão Global a Voz do Senhor
Igreja Ministério Fonte Água Cristalina
Igreja Missão Evangélica Porta Para o Céu
Igreja Missionária a Fonte do Que Clama
Igreja Missionária Aliança, Promessa e Exaltação
Igreja Missionária Alto Refúgio Restaurando Vidas
Evangelho Pleno do Poder de Deus em Jacarepaguá
Igreja na Obra da Restauração de Tudo em Itaguaí
Igreja Pavilhão da Benção
Igreja Pentecostal a Descida do Espírito Santo
Igreja Pentecostal a Marca do Sangue
Igreja Promessa dos Escolhidos de Deus
Igreja Renovação Cristã Ministério Portas Abertas
Igreja Sinos de Belém Missão das Primícias
Igreja Sinais e Maravilhas de Deus
Igreja Só o Senhor Jesus Cristo Reina
(Colaborou Gabriel Cariello)
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