domingo, fevereiro 05, 2017

A febre que arde no interior do Brasil

POR ANA LUCIA AZEVEDO(O Globo)

O agente comunitário de saúde Rogério César Oliveira
trabalha em Piedade de Caratinga
 - Mônica Imbuzeiro

CARATINGA, MG - Semanas antes do anúncio dos primeiros casos de febre amarela silvestre, em janeiro, a doença já atingia moradores do Leste de Minas Gerais. Famílias de pequenos municípios, como Piedade de Caratinga, choravam seus mortos e doentes em dezembro, sem saber de que mal se tratava.

Nunca tinham ouvido falar de febre amarela na região. Os macacos começaram a morrer meses antes nessa parte de Minas. Após a zika, em 2015, e a chicungunha, em 2016, o maior surto de febre amarela silvestre da história recente marca o terceiro ano consecutivo sob o julgo de doenças transmitidas por mosquitos no Brasil. Segundo o último informe do Ministério da Saúde, há 921 casos notificados no Brasil, 804 dos quais em Minas Gerais.

Porém, 702 estão em investigação, 161 foram confirmados e 58 descartados. Há 150 mortes suspeitas, 60 das quais já foram confirmadas e três descartadas. As demais permanecem em investigação.
Dalva de Lima Oliveira, do Córrego dos Adão, Piedade de Caratinga, Minas Gerais, contou um a um os dias para que a vacina da febre amarela começasse a proteger os quatro filhos. O marido de Dalva, José Campos de Oliveira, de 53 anos, adoecera pouco antes do Natal. Morreu dia 31, sem ver o Ano Novo.

— Ele não aguentou esperar o ano chegar. A gente nunca tinha ouvido falar de febre amarela e, quando ele morreu, ninguém sabia do que tinha sido. A confirmação só veio em janeiro, tarde demais — diz dona Dalva, de 50 anos que, como o marido, o Seu Zequinha, nasceu e nunca saiu da região.

Enquanto dona Dalva e outros tantos brasileiros contam os dias de suas tragédias, o Brasil marca em anos consecutivos seu pesadelo sanitário. A microcefalia da zika em 2015. As dores da chicungunha em 2016. E então, no início de 2017, o anúncio oficial do surto de febre amarela. O Brasil esqueceu a febre. A febre não esqueceu o Brasil.

Há três décadas a dengue não dá trégua. Somadas, dengue, zika e chicungunha, as doenças do onipresente Aedes aegypti, alcançaram a fronteira dos dois milhões de casos oficiais. Exatamente 1.987.678 milhão de casos até dezembro de 2016, mês da última divulgação do Ministério da Saúde sobre as doenças do Aedes.

Para as doenças, o calendário não para. E 2017 veio com o anúncio de outro mal de mosquito, a febre amarela silvestre, esta transmitida por Haemagogus e Sabethes, gêneros das florestas e suas bordas. Mas em janeiro, quando foi feito o anúncio público dos primeiros casos de febre amarela, em Ladainha, também em Minas, dona Dalva e sua família já tinham enterrado Seu Zequinha, mergulhados na incerteza do abismo sanitário brasileiro.

A Piedade da dona de casa Dalva se encontra no alto de um morro com a Imbé de Minas do lavrador Manoel Clementino Lopes. Aos 53 anos, após ter sido desenganado devido à febre hemorrágica e à falência do fígado, ele encontrou forças para se recuperar. Em 27 de janeiro, deixou o hospital. Está de volta a sua plantação, que só de alface tem 150 mil pés. Do alpendre onde gosta de ficar sentado enquanto se restabelece, avista suas hortaliças, seu cafezal e um fragmento de floresta.

— É nossa reserva legal. É muito importante para o clima, para a água. Precisamos dela. O que está errado é ter febre amarela. Ninguém aqui era vacinado, foi uma correria. Ninguém tinha sido informado. Desenganaram meu pai, o entregaram a Deus e ele lutou para viver, ficou 13 dias na UTI e voltou.

Nós também vamos lutar para continuar em paz nas nossas terras, nossa floresta — afirma a filha de Manoel, Carmem Mendes Lopes, de 25 anos.

Carmem, como o restante dos 11 membros da família, trabalha na roça:
— Somos unidos demais. Trabalhamos muito, produzimos três a quatro mil pés por dia. Temos alface, mostarda, rúcula. E vamos continuar. Mas essa doença assustou. Não era para ser assim.

A paisagem de Imbé e Piedade é um mosaico de plantações, casas, florestas e pastos por onde a febre amarela se espalha como onda. Esse mosaico onde homens, animais e plantas se misturam se repete incontáveis vezes pelo Brasil rural afora, muito além das fronteiras de Minas.

A onda do pesadelo sanitário avançou para o Leste, no Espírito Santo e na Bahia. Respingou em São Paulo, Tocantins e Distrito Federal. Ressuscitou um temor que há quase um século o Brasil não tinha, o da doença que até o início do século passado era o maior flagelo da saúde pública da nação.

O Brasil das epidemias velhas e novas, juntas e misturadas, é o mesmo país que ainda não aprendeu a conciliar a ocupação desordenada e a destruição do meio ambiente do passado e do presente com os desafios das promessas de prosperidade da biodiversidade e da agricultura.

Na região de Caratinga, onde ficam Piedade e Imbé, estão alguns exemplos de agricultura familiar bem-sucedidos e fragmentos de florestas remanescentes, relíquias vivas da riqueza da Mata Atlântica. A mesma riqueza da qual dependem a água, o clima e a agricultura.

Agora, esse quinhão de Brasil que deu certo vê no espelho o Brasil que não soube se proteger dos velhos fantasmas. Ali, no morro onde Piedade de Caratinga e Imbé se encontram, a febre amarela começou a atacar os homens em dezembro, antes dos primeiros relatos oficiais virem à tona, na primeira semana de janeiro.

Os macacos morreram em silêncio bem antes. A secretária de Saúde de Piedade, Renata Couto, descobriu que os primeiros relatos de macacos mortos de moradores são de setembro. Há um de agosto. Em novembro, os macacos já tinham praticamente desaparecido.

— Quando assumimos a prefeitura em janeiro, demos de cara com a febre amarela, foi aí que falaram que os casos de doença estranha de dezembro eram causados por ela. Foi um choque. Aqui ninguém nunca tinha ouvido falar de febre amarela. Ficamos desesperados, a população em janeiro entrou em pânico — conta Renata.

Do lado do morro de Piedade de Caratinga fica o Córrego dos Adão. No de Imbé, o Córrego dos Manduca. Córregos são como bairros rurais que levam o sobrenome dos primeiros moradores. A origem são os riachos à volta dos quais há tempos essas comunidades se estabeleceram. Neles quase todo mundo guarda algum grau de parentesco. E todos se conhecem. O que ninguém conhecia mesmo era a febre amarela.

O café trouxe prosperidade nos últimos anos a este quinhão do Vale do Rio Doce, empobrecido e degradado em sua maior parte. Quase todos na região cultivam café e as também produtivas hortaliças. O padrão de vida dos que vivem da agricultura familiar melhorou. Só não chegou informação.

Seu Zequinha morreu sem entender o que devastara tão depressa. Aposentado, ele ainda trabalhava na lavoura de café de amigos "para passar o tempo" nas palavras da viúva. Começou a passar mal de repente em 17 de dezembro. Teve vômitos, dores e febre. Quatro dias depois, já não se aguentava em pé. Vomitava sangue. Foi internado. Dia 31, faleceu.

Ele morreu no hospital da vizinha Caratinga, onde havia sido internado. Não havia vaga em Belo Horizonte.

— Ninguém sabia o que ele tinha. Só lá no fim, quando já estava muito ruim e começaram a chegar outros doentes, é que os médicos falaram que tinha alguma coisa estranha. Muita gente com problema de fígado. Foi tarde demais. Ah, sinto tanta saudade do meu marido. Ele era tudo para a gente. Quando ele morreu, falei para os meus filhos, agora vocês estão por Deus. Eu fico aqui buscando alegria nas minhas flores. Não penso em ir embora. Para onde iria?

— diz dona Dalva.
Rogério César de Oliveira, 28 anos, agente de saúde comunitário de Piedade de Caratinga, lembra do início de janeiro como o pior momento de sua vida:

— Meu trabalho é orientar a vacinação e tranquilizar as pessoas. Conheço todo mundo aqui e muitos são meus parentes. Mas é difícil tranquilizar alguém quando você mesmo está assustado. Nunca tivemos algo assim na região.

Essa doença é devastadora. Antes do surto, tinha vacina no posto. Mas apenas isso não adianta porque as pessoas só tomam, se há campanhas para alertá-las. A desinformação é grande. Foi a maior correria, deu medo. O estoque acabou e nos primeiros dias, enquanto não foi reposto, deu muita confusão.

Em Córrego do Adão, a lavradora e dona de casa Bruna Sabino de Souza, de 26 anos, teve medo duas vezes. O primeiro, que a filha Gabriela, de 4 anos, não recebesse a segunda a dose da vacina — ela havia sido vacinada aos 9 meses. O segundo, da doença que quase matou sua mãe, Sonia de Souza, de 58 anos, e o cunhado, Claudinei da Silva Campos, de 36.

— A gente nem sabia que os adultos tinham que vacinar. Vimos gente morrendo em dezembro e em janeiro falaram que era febre amarela, foi uma correria. Mas minha mãe adoeceu em 19 de dezembro, de uma hora para outra. Não queria ir para o hospital, mas ficou tão mal que passou o Natal internada. Os médicos disseram que nunca tinham visto um fígado ruim daquele jeito — conta Bruna.

Sonia de Souza teve alta em janeiro, quando já se sabia que era febre amarela. Bruna pensava só em Gabriela:

— Desespero de mãe, estava uma briga danada no posto para conseguir vacina. Eu nem sabia se ela tinha que tomar logo a segunda dose, mas fiquei apavorada. Se não tivesse para mim, tudo bem. Mas minha filha tinha que ter — diz.

Ela e a filha conseguiram a vacina. Mas esta chegou tarde para Claudinei, que adoeceu no início de janeiro. Com a pele ainda amarelada, o agricultor de hortaliças se recupera em casa.

— A dor na barriga era demais. Uma sensação horrível. Consegui sair dessa, mas meu fígado está mal. Os médicos disseram que vai levar um tempo. Enquanto isso, não posso trabalhar. Botam a culpa nos macacos. Coitados.
Morreram todos. A culpa é do desgraçado do mosquito que nunca nos deixa em paz. A gente não sabia que tinha que vacinar — lamenta Claudinei.

As casas dele e Bruna são vizinhas. Se debruçam entre a plantação e a floresta, onde os macacos barbados cantavam ao anoitecer. Os macacos morreram e a mata agora é silêncio.

— Assim sempre foi na roça, só sentimos falta dos macacos. Mas não tem vida melhor que essa. Não consigo viver na cidade. Aqui tenho sempre o que fazer.

Na cidade a vida fica parada — afirma Bruna.

Nos municípios da região rural à volta de Caratinga é tênue a distinção entre a rua, a roça e a mata. A febre se chama silvestre porque os mosquitos que a transmitem são do mato e não o urbano Aedes, que por lá espalha as dores da dengue. E foi dengue que Cileandro Barbosa, de 49 anos, o Zé do Rádio, de Imbé de Minas, pensou de início ter. Era dezembro e ninguém falava em febre amarela.

— Primeiro vieram as dores, muita febre, vômito. Segurei três dias em casa, mas não aguentei. Achei que ia morrer e os médicos também. Me levaram para Belo Horizonte, fui internado na UTI e só saí do hospital em 25 de janeiro. Agora, é só olhar para os meus olhos e saber o que tenho.

Os olhos de Cileandro estão amarelos da cor da febre. De volta a sua casa amarela em Imbé, ele vê um vizinho cultivar pés de café num morro em cuja outra metade ainda sobrevive um fragmento de floresta.


— Os médicos disseram que devo ter sido picado no cafezal onde trabalho às vezes em São Domingos das Dores. Bem, fica a uns dois quilômetros daqui e é igual a essa que a gente vê da janela.

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