Contando na ponta do lápis, sem o rigor da
histórica como ciência, temos menos de 40 anos de regime democrático, neste
sentido liberal do termo – somo aqui 2 anos de gov. Eurico Gaspar Dutra
(1946/47), mais 5 anos do governo JK (1956/61), acrescento 3 anos do governo
Jânio Quadros/Jango Goulart (1961/64) e, por fim, os últimos 26 anos da
redemocratização, considerando de Collor até Dilma (1990/2016).
É como se as diferentes
gerações de brasileiros e brasileiras tivessem vivenciado algo em torno de 7%
da existência histórica do país sob o Estado Democrático de Direito. Os outros
93% do tempo foram anos de colônia, império, República Velha (que começou com
um golpe militar, em 1889), ditaduras de diversas ordens (Estado Novo/1930-45 e
a Ditadura Civil-Militar/1964-1985, foram os períodos mais extensos). Somos
frutos, filhos, netos, bisnetos e tetranetos de uma longuíssima tradição
autoritária, com quase 400 anos de escravidão a nos ferir a alma,
verticalmente.
Neste contexto, o golpe
parlamentar-jurídico-midiático que está em curso abre um novo hiato nesta
trajetória tortuosa e marcadamente autoritária. Um momento chave nesse processo
em curso foi a sessão do Senado Federal, em 31 de agosto passado, que decidiu
pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54,5 milhões de
votos em 2014.
O novo governo, que se instala sob o manto do
golpismo e da impopularidade (nas principais capitais do País, segundo o
Instituto Datafolha, Temer tem entre 8% a 13% de aprovação), tem uma agenda que
não passou pelo crivo das urnas, em última análise, o único espaço de
legitimidade que o regime democrático vigente tem para o exercício do cargo
mais elevado na hierarquia política da sociedade: a Presidência da República.
Mídia joga papel decisivo
Olhando em retrospectiva esse golpe em curso, que
começou antes das eleições de 2014 e se estendeu nos últimos dois anos, há uma
pergunta que não quer calar: a crise política que levou ao impeachment teria
existido sem o protagonismo do oligopólio de mídia?
Há momentos que ilustram com clareza solar esse
papel decisivo, especialmente quando se trata de disputa da hegemonia e da
formação de opinião pública pró-impeachment. Neste sentido, as capas do jornal
O Globo, cobrindo as manifestações de 13/03/2016 (pró-impeachment) e 18/03/2016
(veja imagem) é uma síntese perfeita dessa afirmação.
Na manchete pró-impeachment se lê: “Brasil vai às
ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”; na outra ponta, a manchete
cobrindo os atos contra o impedimento da presidente anunciava: “Aliados de
Dilma e Lula fazem manifestações em todos os estados”. No ato pró-golpe e em
defesa do impeachment estava o “Brasil”; no outro, os “aliados” – quase
cúmplices...
A manifestação de 13 de março seria ainda
fortemente impactada, no sentido da mobilização de audiência e participação
política, pelo vazamento ilegal do áudio da conversa entre o ex-presidente Lula
e a presidenta Dilma (ouça aqui: http://migre.me/uYYNZ). Apresentado pela
vitrine do Jornal Nacional, pela voz de William Bonner, o áudio foi viralizado
pelas redes sociais e se transformou num mega catalizador da mobilização
pró-golpe. Isto é fato inegável.
Ombudsman defende o indefensável...
Na tentativa de analisar o comportamento do seu
jornal, a Folha de S. Paulo, a jornalista Paula Cesarino Costa publicou sua
coluna intitulada “O impeachment, os leitores e o jornal” (ed. 04/09/2016). Ela
examina o período de abril a agosto deste ano, num total de 154 manchetes, sob
a lente do conceito de “valência” (positiva/neutra/negativa), largamente
utilizado na ciência política e no conhecido site Machetômetro (http://www.manchetometro.com.br/).
O conceito em si é insuficiente para explicar as
opções e contextos nos quais as manchetes são produzidas. Paula parte da
obviedade de que “processo de impeachment gera uma carga forte de notícias
negativas a seu protagonista”, porém mesmo assim não questiona a escolha e
recortes dos fatos políticos da Folha.
Sua conclusão é que o diário paulista produziu uma
cobertura “equilibrada”. Contudo, vejamos o que diz a própria ombudsman: “No
período, a Folha publicou 32 manchetes que considerei negativas a Dilma e 13
positivas. É compreensível também que as promessas iniciais de Temer
proporcionem narrativa favorável a ele. Foram 34 manchetes positivas; e apenas
24 negativas” (Fonte: http://migre.me/uYZ0k). Haja contorcionismo
verbal para justificar o tal “equilíbrio”...
A conclusão, que já estava posta desde o começo,
pela escolha da “valência” como critério de análise, não poderia ser outra.
Escreve Paula: “No entanto, parece-me justa a observação de que o jornal se
esforçou para cumprir seu papel de vigilante crítico com Dilma, mas foi menos
investigativo e combativo com o governo Temer. É a impressão que fica da
revisão de 154 manchetes”. Será que o/a distinto/a leitor/a concorda com a
ombudsman da Folha de S. Paulo?
O legado mais nefasto da crise política, turbinada
pelo protagonismo antidemocrático da mídia tradicional, sob o peso de seu
oligopólio, é a desconstrução da democracia. Afinal, se na longa noite de mais
de cinco séculos, todos os “gatos são pardos”, tanto faz em quem o distinto
eleitor ou eleitora possa votar nas próximas eleições. Neste cenário, os
“salvadores-da-pátria” de plantão, em geral figuras obtusas e retrógradas da
vida política, se apresentam para mais uma aventura antidemocrática, que pode
durar algumas décadas. O fascismo, definitivamente, saiu do armário.
Neste sentido, é previsível que o governo Michel
Temer caminha para o aprofundamento da crise, com a tentativa de implementar
uma agenda que afronta os interesses dos trabalhadores, cujo caráter
entreguista e antinacional já se verificou na montagem do ministério e na
atuação pífia na última reunião do G-20, na China, no começo de setembro.
Estamos diante de um novo hiato antidemocrático e autoritário? A ver.
(*) Professor do Departamento de Jornalismo da
UFSC; pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho
(LASTRO/UFSC).
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