sexta-feira, setembro 16, 2016

A desconstrução midiática da democracia

Por Samuel Lima (blog do Manuel Dutra) Não é exagero afirmar que a história política do Brasil não se pautou pela democracia como forma de governo e representação. Desde a “inauguração” da Terra Brasilis, segundo reza a historiografia oficial por Pedro Cabral, no distante 22 de abril de 1500, lá se vão 516 anos de um percurso do acidente.

Contando na ponta do lápis, sem o rigor da histórica como ciência, temos menos de 40 anos de regime democrático, neste sentido liberal do termo – somo aqui 2 anos de gov. Eurico Gaspar Dutra (1946/47), mais 5 anos do governo JK (1956/61), acrescento 3 anos do governo Jânio Quadros/Jango Goulart (1961/64) e, por fim, os últimos 26 anos da redemocratização, considerando de Collor até Dilma (1990/2016).

É como se as diferentes gerações de brasileiros e brasileiras tivessem vivenciado algo em torno de 7% da existência histórica do país sob o Estado Democrático de Direito. Os outros 93% do tempo foram anos de colônia, império, República Velha (que começou com um golpe militar, em 1889), ditaduras de diversas ordens (Estado Novo/1930-45 e a Ditadura Civil-Militar/1964-1985, foram os períodos mais extensos). Somos frutos, filhos, netos, bisnetos e tetranetos de uma longuíssima tradição autoritária, com quase 400 anos de escravidão a nos ferir a alma, verticalmente.

Neste contexto, o golpe parlamentar-jurídico-midiático que está em curso abre um novo hiato nesta trajetória tortuosa e marcadamente autoritária. Um momento chave nesse processo em curso foi a sessão do Senado Federal, em 31 de agosto passado, que decidiu pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54,5 milhões de votos em 2014.

O novo governo, que se instala sob o manto do golpismo e da impopularidade (nas principais capitais do País, segundo o Instituto Datafolha, Temer tem entre 8% a 13% de aprovação), tem uma agenda que não passou pelo crivo das urnas, em última análise, o único espaço de legitimidade que o regime democrático vigente tem para o exercício do cargo mais elevado na hierarquia política da sociedade: a Presidência da República.

Mídia joga papel decisivo

Olhando em retrospectiva esse golpe em curso, que começou antes das eleições de 2014 e se estendeu nos últimos dois anos, há uma pergunta que não quer calar: a crise política que levou ao impeachment teria existido sem o protagonismo do oligopólio de mídia?

Há momentos que ilustram com clareza solar esse papel decisivo, especialmente quando se trata de disputa da hegemonia e da formação de opinião pública pró-impeachment. Neste sentido, as capas do jornal O Globo, cobrindo as manifestações de 13/03/2016 (pró-impeachment) e 18/03/2016 (veja imagem) é uma síntese perfeita dessa afirmação.

Na manchete pró-impeachment se lê: “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”; na outra ponta, a manchete cobrindo os atos contra o impedimento da presidente anunciava: “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestações em todos os estados”. No ato pró-golpe e em defesa do impeachment estava o “Brasil”; no outro, os “aliados” – quase cúmplices...

A manifestação de 13 de março seria ainda fortemente impactada, no sentido da mobilização de audiência e participação política, pelo vazamento ilegal do áudio da conversa entre o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma (ouça aqui: http://migre.me/uYYNZ). Apresentado pela vitrine do Jornal Nacional, pela voz de William Bonner, o áudio foi viralizado pelas redes sociais e se transformou num mega catalizador da mobilização pró-golpe. Isto é fato inegável.

Ombudsman defende o indefensável...

Na tentativa de analisar o comportamento do seu jornal, a Folha de S. Paulo, a jornalista Paula Cesarino Costa publicou sua coluna intitulada “O impeachment, os leitores e o jornal” (ed. 04/09/2016). Ela examina o período de abril a agosto deste ano, num total de 154 manchetes, sob a lente do conceito de “valência” (positiva/neutra/negativa), largamente utilizado na ciência política e no conhecido site Machetômetro (http://www.manchetometro.com.br/).

O conceito em si é insuficiente para explicar as opções e contextos nos quais as manchetes são produzidas. Paula parte da obviedade de que “processo de impeachment gera uma carga forte de notícias negativas a seu protagonista”, porém mesmo assim não questiona a escolha e recortes dos fatos políticos da Folha.

Sua conclusão é que o diário paulista produziu uma cobertura “equilibrada”. Contudo, vejamos o que diz a própria ombudsman: “No período, a Folha publicou 32 manchetes que considerei negativas a Dilma e 13 positivas. É compreensível também que as promessas iniciais de Temer proporcionem narrativa favorável a ele. Foram 34 manchetes positivas; e apenas 24 negativas” (Fonte: http://migre.me/uYZ0k). Haja contorcionismo verbal para justificar o tal “equilíbrio”...

A conclusão, que já estava posta desde o começo, pela escolha da “valência” como critério de análise, não poderia ser outra. Escreve Paula: “No entanto, parece-me justa a observação de que o jornal se esforçou para cumprir seu papel de vigilante crítico com Dilma, mas foi menos investigativo e combativo com o governo Temer. É a impressão que fica da revisão de 154 manchetes”. Será que o/a distinto/a leitor/a concorda com a ombudsman da Folha de S. Paulo?

O legado mais nefasto da crise política, turbinada pelo protagonismo antidemocrático da mídia tradicional, sob o peso de seu oligopólio, é a desconstrução da democracia. Afinal, se na longa noite de mais de cinco séculos, todos os “gatos são pardos”, tanto faz em quem o distinto eleitor ou eleitora possa votar nas próximas eleições. Neste cenário, os “salvadores-da-pátria” de plantão, em geral figuras obtusas e retrógradas da vida política, se apresentam para mais uma aventura antidemocrática, que pode durar algumas décadas. O fascismo, definitivamente, saiu do armário.

Neste sentido, é previsível que o governo Michel Temer caminha para o aprofundamento da crise, com a tentativa de implementar uma agenda que afronta os interesses dos trabalhadores, cujo caráter entreguista e antinacional já se verificou na montagem do ministério e na atuação pífia na última reunião do G-20, na China, no começo de setembro. Estamos diante de um novo hiato antidemocrático e autoritário? A ver.

(*) Professor do Departamento de Jornalismo da UFSC; pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC).

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