Distinto leitor, encantadora leitora,
ponham-se na pele de quem tem de escrever toda semana. Não me refiro à
obrigação de produzir um texto periodicamente, sem falhar. Às vezes, como tudo
na vida, é um pouquinho chato, mas quem tem experiência tira isso de letra, há
truques e macetes aprendidos informalmente ao longo dos anos e o macaco velho
não se aperta. O chato mesmo, na minha opinião, é o “gancho”, o pé que o texto
tem de manter na realidade que o circunda. Claro, nada impede que se escreva
algo inteiramente fantasioso ou delirante, mas o habitual é que o artigo ou
crônica seja suscitado pelo cotidiano, alguma coisa que esteja acontecendo ou
despertando interesse.
Pois é. Hoje, outra
vez, qual é o gancho? Quer se leia o jornal, quer se converse na esquina, só se
fala em ladroagem. Roubalheiras generalizadas, desvios, comissões, propinas.
Rouba-se tudo, em toda parte. Roubam-se recursos do governo na União, nos estados
e nos municípios. Roubam-se donativos humanitários e verbas emergenciais
destinadas a socorrer flagelados. Rouba-se material, rouba-se combustível,
rouba-se o que é possível roubar. Qual é, então, o gancho? Só pode ser a
ladroagem. Não há outro, pelo menos que eu veja. É o tema do dia, não adianta
querer escolher outro, ele se impõe.
Hoje creio que não há
um só brasileiro ou brasileira (de vez em quando eu acerto no uso desta nova
regra de distinguir os gêneros) que não tenha a convicção de que pelo menos a
maior parte dos governantes, nos três poderes, é constituída de privilegiados
abusivos e larápios, no sentido mais lato que o termo possa ter. Já nos
acostumamos, faz parte do nosso dia a dia, ninguém se espanta mais com nada,
qualquer mirabolância delinquente pode ser verdade. E também já nos acostumamos
a que não aconteça nada aos gatunos. Não só permanecem soltos, como devem
continuar ricos com o dinheiro furtado, porque não há muita notícia de
devoluções.
Ou seja, por mais que
alguma autoridade nos diga expressamente o contrário, usando um juridiquês
duvidoso e estatísticas entortadas, a verdade é que, no Brasil, o crime
compensa. Presumo que até os assaltantes pés de chinelo tenham pelo menos a
vaga percepção de que todos os poderosos roubam e, portanto, fica mais uma vez
comprovado que quem não rouba é otário. Às vezes, chega a parecer que existe
uma central programadora de falcatruas, pois a engenhosidade dos ladrões não
tem limites e, hoje, analisar somente os golpes dados em um ou dois ministérios
requereria um profissional especializado, com anos de estudo e experiência. É
criado um órgão ou despesa, aparece logo uma quadrilha dedicada a furtar desse
órgão ou abiscoitar essa despesa. Suspeitamos de tudo, de obras públicas a
loterias, da polícia aos tribunais. Contamos nos dedos os governantes, em
qualquer dos três poderes, em que ainda acreditamos que podemos confiar – e é
crescente a descrença neles, bem como o cinismo e a apatia diante de uma
situação que parece insolúvel e da qual, como quem cumpre uma sina má, jamais
nos desvencilharemos.
Não seria de todo
descabida a afirmação de que somos uma sociedade sem lei. Sob certos aspectos,
somos mesmo, porque as nossas leis não têm dentes, não mordem ninguém. Mesmo na
hipótese de um assassinato ser esclarecido, o que está longe da regra, estamos
fartos de ver homicidas ficarem praticamente impunes por força de uma
labiríntica e deploravelmente formalista rede de recursos, firulas jurídicas e
penas brevíssimas. A possibilidade de, mesmo confesso, um homicida jamais ser
de fato punido, a não ser muito levemente, é concretizada todo dia. Aqui matar
é cada vez mais trivial e muitos assaltantes atiram pelo prazer de atirar,
matam pelo gosto de matar.
Não sei em que outro
país do mundo o sujeito entra numa delegacia policial levando o cadáver da
vítima, mostrando a arma do crime e confessando sua autoria, para ser posto em
liberdade logo em seguida, já cercado de advogados e manobras para evitar a
cadeia. É difícil de acreditar, mesmo sabendo-se que é verdade documentada. Réu
primário, moradia conhecida, ocupação fixa etc. e tal e o sujeito vai para casa
quase como se nada tivesse acontecido, talvez até trocando um aperto de mão com
o delegado, como já imaginei aqui. Ou seja, é crime, mas é mole matar no Brasil,
o preço é muito em conta. E essa situação não envolve apenas os ricos, porque
os outros também estão aprendendo, como foi o caso de um jovem assaltante de
São Paulo, que muitos de vocês devem ter visto na TV. Apresentou-se numa
delegacia espontaneamente, é réu primário, tem residência fixa etc. etc. Embora
tenha posto a culpa na vítima, por esta haver reagido, confessou o crime. Foi
solto logo em seguida, saindo muito sorridente da delegacia. E, se um dia vier
a ser condenado, contará com um mar de recursos à sua disposição,
complementados pelos benefícios a que terá direito, com a progressão da pena.
Já tive oportunidade
de dizer aqui que a melhor maneira de assassinar alguém no Brasil é encher a
cara, sair no carro e atropelar a vítima. Encher a cara é agravante em toda
parte, mas aqui parece funcionar como uma espécie de atenuante. Fica-se
discutindo se o homicídio é doloso ou culposo, se o que vale no caso é o Código
de Trânsito ou o Código Penal e, no fim das contas, o que acontece é o
atropelador pagar fiança, ir embora para casa e esperar, na pior das hipóteses,
ser enquadrado numa dessas leis desdentadas e cumprir pena em liberdade, ou
quase isso. O que, somado ao que está dito acima, leva mesmo a concluir que,
entre nós, o crime compensa. E, talvez graças aos exemplos dados por
parlamentares e outros governantes, estamos assistindo à democratização da
impunidade, que gradualmente deixa de ser privilégio dos ricos e poderosos para
se estender a todos. Tá dominado.
João
Ubaldo Ribeiro, publicado no jornal Estado de São Paulo, em 23 de outubro de 2011
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