segunda-feira, setembro 01, 2014

Zé Raimundo, um bom prefeito

'Já faz quase um ano que não aparece ninguém aqui no gabinete pedindo ajuda. E o único vira-lata que perambulava pelas ruas morreu no seu tempo, com 15 anos de idade'.

Pelo jornalista e professor Manuel Dutra (extraído de seu blog)

Vale a pena ler

Zé Raimundo foi à mercearia mais sortida e requereu a cachaça, que pagaria assim que chegasse o fundo de participação no banco da cidade vizinha, pois na sua terra natal não existia banco. A contragosto mandou um dos 16 funcionários chamar o Mujeco a quem entregou a encomenda.

A cidade tinha uma população suficiente para justificar a manchete mais criativa do Correio das Águas: “Oito mil narizes para o ar”, na edição extra de uma folha só que saiu no fim da tarde do dia seguinte à passagem do primeiro avião pela cidade. O feriado, naquele dia, não foi decretado por Zé Raimundo, mas pelo povo. Alguns até comentaram que o Seu Arquibaldo, o dono do jornal, tinha cometido um grave erro na manchete, pois junto com os narizes foram para o ar 16 mil olhos e que ninguém cheira avião, muito menos lá nas alturas.

Zé Raimundo era, na verdade, o Veremundo, mas o Chico das Cordas, espécie de precursor de marqueteiro, impôs a mudança, mais fácil para o eleitorado. E com esse nome ele chegou à prefeitura. Seu Anacleto, professor dos bons, e que tinha desasnado uma meia dúzia de analfabetos do lugar, defendia que o prefeito retomasse seu nome de batismo, pois tal mudança correspondia a demagogia.

Vulgaridade
Ex-coroinha e ex-aluno de latim do frei Edmundo Bonkosh, do tempo em que a missa começava com o “introibo ad altare Dei”, o professor Anacleto abominava a vulgaridade e, para ele, nada mais vulgar do que o nome Zé, ainda mais como apelido da mais alta autoridade municipal. E explicava, com a solenidade de uma aula: - Trata-se de duas palavras nobres: Vere, que vem do latim Verus, significa justo, verdadeiro, correto. E Mundus, procedente da mesma língua-mãe do nosso Português, designa aquele que é limpo, puro. Nada mais adequado para um governante, possuir um nome que agrega verdade e limpeza. A roda que se formara em torno do professor aplaudiu, obviamente sem entender bem o que o sábio acabara de dizer.

Membros do partido de oposição, por outro lado, instigados pela dona Joana Sem Pecado (assim a chamavam porque ia muito à igreja) resolveram contradizer o professor Anacleto e mandaram chamar o professor Délio, apelidado de Ribeirão (nunca se soube a razão deste apelido) para dar uma explicação “razoável” ao nome de batismo do prefeito. Na reunião dos poderosos do lugar, derrotados na eleição do Zé Raimundo, Ribeirão proclamou que Veremundo não era nada daquilo que o outro professor, o Anacleto, tinha ensinado. Mas tratava-se de um antigo rei do qual pouco se sabe, que teria governado um reino lá das Europas há mais de 1.500 anos, um período conhecido como obscuro. Travou-se, então, a polêmica que viria a marcar todo o governo de Veremundo.

Esse foi o primeiro grande embate político no município após a posse do prefeito; este deu pouca importância a isso, mais importante era tentar realizar o que ele sonhara quando, já rapazinho, teve que abandonar a sua cidade fugindo da miséria e da ignorância, mas acima de tudo, das investidas de Antônio Turco, dono do Armazém, das terras e de quase tudo no lugar, além de presidir com mão de ferro a Associação Empresarial e Beneficente, conhecida pelo povo como AEB.

Retornado da cidade grande, depois de licenciar-se do banco onde trabalhava, Zé Raimundo não tinha o menor traquejo para o jogo político-partidário. Mas tinha intuição. Na Câmara, dos nove vereadores, três eram do seu partido, três da oposição e os outros três compunham a bancada do PMD, que era o Partido da Maioria Democrática, seção local de um grande partido provincial. Tanto a situação como a oposição obedeciam a Antônio Turco. Os independentes também, a depender dos projetos que interessavam ao prefeito ou à AEB. Zé Raimundo insistia que os projetos não eram do interesse do prefeito, mas do povo. Esses projetos integravam obrigatoriamente a pauta das reuniões semanais da Associação Empresarial e Beneficente.

Sonegação
Arrecadação local era inexistente: os pobres não tinham com que pagar impostos e os membros da AEB não pagavam porque não queriam, e a prefeitura nada podia fazer contra a sonegação. Os recursos do fundo provincial depositados na conta da prefeitura mal davam para pagar as 35 professoras e os 16 funcionários da prefeitura, inclusive os fiscais encarregados de cobrar os impostos. Nas escolas não havia merenda escolar, as oito ruas e 17 travessas não tinham calçamento nem na Rua da Frente, as casas eram desalinhadas. Era uma cidade feia, era feiúra e lixo por todo canto, até na frente da igreja, pois o vigário já se mudara para Mundaú, cidade vizinha com nome trazido pelos imigrantes cearenses.

E agora, Zé? Vais fazer o quê? Assim perguntou um amigo que viera da cidade grande ver de perto a administração do ex-colega de escola.

Boa pergunta ao novo prefeito. O que fazer.

A única coisa que não passava pela cabeça de Zé Raimundo era renunciar antes mesmo de dar início a seu governo. Intuitivo, pensou consigo e logo expôs o plano à meia dúzia de correligionários: limpar a pequena cidade. Limpar? Perguntaram todos.

Habituados à sujeira das ruas, muros e paredes pichados, buracos e lama, calçadas quebradas, os moradores não percebiam que, eles próprios, também andavam sujos ou mal lavados, desalinhados, sem respeito por si próprios. Isso Zé Raimundo foi mostrando durante a conversa. O novo prefeito ainda recordava o que lhe dissera, certa vez, um professor seu, filho pais alemães: - na Alemanha, durante a guerra, as ruas eram sujas e nossos pais e avós sabiam a razão da sujeira. E tinham certeza de que um dia iriam limpar as ruas. Aqui, ao contrário, nem entendo a razão de tanta sujeira nas ruas e nas casas. As pessoas parecem não perceber que nós, humanos, somos parte do mundo, somos elementos da paisagem, como se diz. Logo, se nosso ambiente é limpo, somos limpos também; o contrário também é pura verdade. 

Zé Raimundo encurtou a conversa e convenceu um grupo de 23 dos seus eleitores a botar a mão na massa. Cada um pegou uma vassoura, uma enxada, dois carrinhos de mão já velhos e começaram a varrer a pequena cidade, sempre aos sábados à tarde e nos domingos depois da reza na igreja. Aos poucos, mais pessoas foram aderindo ao puxirum. Ao fim e ao cabo – como se dizia antigamente – a pracinha central e as principais ruas estavam limpas. Era o comentário. 

A partir daí, o prefeito, cuja liderança já se desfazia na iniciativa dos próprios moradores, começou a propor mais iniciativas: por exemplo, a limpeza das casas, por dentro e por fora. Uma equipe foi formada para visitar as residências e orientar a limpeza do interior das casas e dos quintais. Um concurso foi estabelecido: a cada mês, as dez residências mais limpas seriam dispensadas de pagar o IPTU e seus moradores ainda recebiam um vistoso certificado, com os dizeres: Casa Premiada: A Limpeza é o Começo, Depois Tudo Se Faz.

A entrevista
Depois de um ano, a cara da cidadezinha estava mudada e seus próprios moradores tinham até dificuldade em acreditar. Até gente da capital foi atraída pelas notícias desse puxirum, teses e dissertações começaram a ser escritas. Os pesquisadores continuaram chegando, escreviam artigos e livros sobre a obra de Zé Raimundo e seus munícipes.

Lá na universidade da capital, alguns títulos das dissertações de mestrado e doutorado eram os seguintes: “Como mobilizar uma comunidade pela limpeza”; “O progresso depende da higiene coletiva”; “Um prefeito diferente: como recriar a auto-estima pela limpeza de ruas, praças e residências”... Um jornalzinho da Faculdade de Economia publicou um artigo de um analista, com o título: “Como fazer muito com tão pouco”. E começava assim: Com tão pouco, não, com muita vontade e decisão coletiva...”

A cidadezinha começou a virar notícia nos jornais da capital. Um dia, uma dupla de repórteres chegou pedindo uma entrevista. Em seu gabinete, Veremundo vestiu a camisa e ouviu a primeira pergunta: Como foi possível ao senhor fazer de sua cidade a única do Brasil que não tem favelas? Resposta: Não sei te dizer, primeiro limpamos tudo e nunca disse ao povo que eu ia fazer isso ou aquilo. Apenas convidei... 

A segunda pergunta: A partir de agora o senhor vai implantar o planejamento participativo? Resposta: Já ouvi falar disso, não sei bem o que é, se o povo souber que faça...

E quais os próximos passos? Resposta: Também não sei ainda, estamos muito ocupados para tratar de coisas como planejamento estratégico; os roçados estão indo bem e o povo está ganhando mais agora... As escolas estão limpas, têm banheiro com água corrente, as crianças merendam todo dia. Os professores estão fazendo cursos de aperfeiçoamento aqui mesmo.

Só com a limpeza? Resposta: Não. Aliás, sim. Limpamos as ruas e as praças, transformamos as favelas em bairros e as pessoas pegaram a corda. Nada disso foi planejado em reuniões de secretariado, até porque não temos isso aqui. Nem assessoria de imprensa.

E a próxima eleição? Resposta: Vou apresentar meu nome à reeleição e vamos ter que enfrentar o Antônio Turco, o professor Délio e a turma da Associação Empresarial e Beneficente. Nos acusam de demagogia e corrupção e isso dizem todo dia na rádio de Mundaú que é ouvida aqui também. Lá em Mundaú já pediram até a minha prisão...

E isso que o senhor está fazendo não é demagogia? Resposta: A única coisa que posso te dizer é que aqui quem menos governa é o prefeito. O povo desta cidade agora confia mais em si do que nas verbas da prefeitura. Já faz quase um ano que não aparece ninguém aqui no gabinete pedindo ajuda. E o único vira-lata que perambulava pelas ruas morreu no seu tempo, com 15 anos de idade.

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